31 mars, 2005

O Primeiro Ar

Inspiro.
Expiro.
A ferida faz-se sentir.
Está lá, viva, abaixo do ombro e da base do pescoço no meu quadrante direito.
Expiro mais um pouco
na vã esperança de que o ar remanescente expulse a ferida.
Desisto.
Inspiro.

Expiro.

Inspiro.
Preencho o meu enclave, de ar.
A ferida faz-se presente em todo o meu território,
no meu enclave, o meu universo dentro do outro universo.
Expiro
e faço por dar um pouco do meu enclave ao universo que o rodeia,
pois sou um território isolado e rodeado por terra alheia.
Inspiro.

Expiro
e a ferida contrai-se na directa razão dela,
nas directas razões das
restantes, feridas, suas irmãs e companheiras, suas
coexistentes, precedentes e sucessoras.
Inspiro
e cada irmã, coexistente, precedente
e sucessora – companheira – ferida. Geme tímida e contidamente,
um grito no enclave,
um murmúrio no universo.

Expiro
e inspiro,
vertiginosamente fujo para a frente,
quero perder, dar, doar, largar o pedaço que se arrasta preso
ao meu enclave.

Expiro
e inspiro frenética e ansiosamente
com a consciência deste buraco que sinto ligeiramente
acima do meu peito, do lado contrário ao coração.
Porque este não dói.
Nem quando
expiro,
nem quando
inspiro.

Mas a dor, o ardor,
o lacrimejar e o ansiar,
acompanham-me neste enclave esburacado,
violado na sua homogeneidade pela ferida que escandalosamente
o deforma.
Que sinto,
ao expirar
e ao inspirar.

É o meu enclave, também, esta dor constante,
de manhã à noite na vigília,
da noite à manhã nos sonhos que me impeço de recordar.

Em cada expiração, em cada inspiração, em cada vez que respiro,
existe uma luta pela não desistência.
Pela não cedência desta minha parte direita e deformada aos vermes que estão à espreita.

Ah, foda-se!
Não será desta que me apanham, pois
dói
mas expiro e inspiro.
Sempre.